domingo, 8 de junho de 2014

A COPA SEM FUMAÇA OU TRAPAÇA


ZERO HORA 08 de junho de 2014 | N° 17822

ARTIGO

Flávio Tavares*




O futebol domina o mundo, definitivamente. Mais do que entretenimento, é arte um balé mágico que nos delicia pela surpresa, pela jogada de improviso que, até quando se repete, é sempre nova e única. Por isto, atrai tanto e, nessa atração, engendra paixões e fanatismos. Há muito passou de mera modalidade desportiva a profissão cultivada e rendosa. Tem escolas e tribunais próprios, estádios monumentais, maiores do que universidades ou institutos de ciências. Jornais, rádios e TVs lhe dedicam mais espaço do que a qualquer outra atividade. Mover os pés (ou as mãos nos goleiros) é mais importante do que mover a mente. Assim, chegamos ao frenesi pela Copa do Mundo. Tudo é a Copa e a Copa está em tudo.

Mas essa expectativa (exacerbada pelos meios de comunicação e pelo “marketing” comercial) corre o risco de se transformar em perigo. Já não somos apenas o país-anfitrião, mas o país-em-guerra destinado a vencer. Não há atletas, mas heróis, combatentes numa guerra em que se mata ou se morre. A única expectativa é triunfar – ser hexacampeão, glória suprema das glórias.

E se não for possível? A possibilidade existe, pois não vamos receber uma herança, mas disputar um torneio. Hoje vivemos sob um impacto ufanista mil vezes maior que em julho de 1950, quando a derrota soou como tragédia nacional. Se algo similar ocorrer, temo que a frustração nos afogue e nos cegue ainda mais.

Hoje, toda a atenção está em sermos insuperáveis no futebol – construir estádios, mais do que escolas ou núcleos de pesquisas; preparar jogadores, mais do que cientistas. Em plena era eletrônica, não nos interessa saber construir um “chip” ou um automóvel, algo que norte-americanos, japoneses e outros que aqui estarão manejam como nós descascamos uma banana. Montamos carros e computadores desenvolvidos lá fora como se fossem daqui. E exportamos astros do futebol.

Num paradoxo, também a vitória pode ser perigosa. O hexa nos fará esquecer as tropelias cometidas com os incalculáveis bilhões de reais das obras, todas realizadas pelo tal “regime diferenciado de contratação”, RDC. Se com licitação já há fraudes, o que pensar sem ela? Pequenos ou grandes que pagam imposto em tudo, esquecerão as isenções que o Legislativo concedeu às obras de conclusão do Beira-Rio.

Restarão perguntas. Por exemplo, por que o prefeito atendeu (prestimoso) às exigências da Fifa, vindas lá da Suíça, e não as da população de Porto Alegre? Por que ao redor do estádio tudo foi rápido, mas o Mercado Público continua igual às horas seguintes ao incêndio de 2013, mesmo sob o nariz do prefeito, visível do seu gabinete?

Nos últimos anos, a Fifa mandou na cidade, mas não instruiu sobre o que fazer com o lixo, em caso de problemas na limpeza pública. E, agora, os resíduos orgânicos foram postos perigosamente junto ao rio, enquanto o prefeito pedia que se guardasse “o lixo seco” em casa. Atento às instruções vindas da Suíça, esqueceu-se de ouvir os funcionários ou os apelos das professoras municipais.

Além da cifra incalculável dos bilhões de reais postos na construção dos estádios, “só em segurança” para a Copa o governo federal gastará quase R$ 2 bilhões.

Nessa cifra não se inclui o que os Estados e municípios gastarão com o recolhimento de mendigos de rua durante o mês da Copa. Só enquanto durar a Copa, pois esse gesto de planejada hipocrisia é apenas para inglês ver como no Brasil tudo é bonitinho.

Tudo é “a Copa”, até o que nada tem a ver com a Copa. Na maior peixaria do Mercado Público ouvi uma senhora perguntar por que o peixe aumentou de preço esta semana: “Pela Copa!”, respondeu o atendente.

Mas, por que (pensei), se Camarões nem joga em Porto Alegre?


*JORNALISTA E ESCRITOR



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