domingo, 25 de maio de 2014

PORTO ALEGRE PELOS OLHOS DE UMA ALEMÃ


ZERO HORA 25 de maio de 2014 | N° 17807

LEANDRO BEHS
THE BEST & THE WORST

UNIVERSITÁRIA DE NUREMBERG, Nina Hechtel experimenta dias de turista e conta o que viu de melhor e pior, de inconveniente e de hospitaleiro na Capital às vésperas da Copa



SAMBA? NOSSA CIDADE É MAIS ROCK AND ROLL

Em frente ao portão de desembarque do aeroporto Salgado Filho, há um posto de informações. Logo atrás, em um espaço montado como se fosse uma loja (embora não haja suvenires à venda), fica o Centro de Informações Turísticas (CIT), onde uma cuia de chimarrão decora o balcão. É entre um ponto e o outro que o teste de Nina Hechtel começa. A universitária alemã pede para saber como chegar ao Beira-Rio, a partir do bairro Moinhos de Vento, onde está morando. Em 15 de junho, o estádio receberá França e Honduras, o primeiro jogo de Porto Alegre no Mundial.

No posto defronte ao desembarque, um rapaz surge solícito, debruçado sobre propagandas da 23ª Festa do Mel de Cambará do Sul e do 16° Encontro das Tradições Italianas, em Farroupilha. Consulta seus colegas a todo instante e, em bom inglês, pede desculpas:

– É que estou aqui há apenas dois dias e ainda não havia conversado com um estrangeiro. Sobre certas informações, preciso de ajuda para repassar a vocês.

Munidos de um mapa da prefeitura, que mostra algumas das principais ruas até o Beira-Rio, nos dirigimos ao CIT. As novas demandas de Nina são respondidas em compreensível inglês por um atencioso atendente com jeitão de guri de colégio. Perguntado sobre onde sambar em Porto Alegre, ele saiu-se com essa:

– Bem, aqui não é o Rio. Somos uma cidade mais rock and roll...

DO YOU SPEAK ENGLISH? NEIN!, RESPONDE O TAXISTA

O teste seguinte é pegar um táxi na saída do aeroporto. Sem filas ao final da tarde de segunda-feira, Nina e eu não encontramos dificuldades para entrar no carro branco com faixa azul. Um motorista de seus 60 anos é o condutor. Pedimos para ir ao hotel Intercity Premium, na Avenida Borges de Medeiros, listado no material oficial da prefeitura. Ele não compreende. Nina escreve o nome em um pedaço de papel.

– Ah, ok, ok. Entendi – diz o taxista, em português.

Nina então indaga:

– Do you speak english?

A resposta tem um toque de clarividência que quase abala a sólida estrutura germânica da passageira.

– Nein! – nega o motorista, adivinhando o idioma de Nina.

Esse brevíssimo diálogo resume as tentativas de comunicação verbal com os taxistas. Ao seu modo, nosso motorista buscou o entendimento, e o trajeto foi cumprido com exatidão. Os R$ 35 do aeroporto à boca do Centro evidenciam, sobretudo, a tranqueira na Avenida Farrapos.

É O AUXILIADORA. É ESSE! É ESSE!

A terça-feira começa cedo. Nina quer ir do Moinhos de Vento ao Mercado Público, uma das atrações mencionadas em um raro folheto turístico em inglês distribuído no CIT do aeroporto. Como uma típica europeia, acostumada a usar transporte público, a estudante recorre aos ônibus.

Na parada de ônibus em frente ao Parcão, Nina pergunta às pessoas qual ônibus deve pegar. São cinco homens e mulheres, entre os 50 e os 70 anos. Nenhum entende inglês. Mas, cheios de boa vontade, reconhecem o termo Public Market. Tem início um festival de mímica – porque placas e mapas com informações sobre linhas de ônibus parecem não existir na Capital. Alguns ônibus seguem viagem até que uma simpática senhora de finos cabelos brancos aponta para o veículo e, entusiasmada com o sucesso de seu bom-samaritanismo, avisa:

– É o Auxiliadora. É esse! É esse!

Assim que embarca, Nina questiona o cobrador da Carris se o Auxiliadora vai ao Mercado Público. A resposta é dada em português e com um titubeante aceno de cabeça. Nisso, um passageiro escuta a conversa, se levanta, vai até a alemã e, em inglês, afirma que ela pegou o ônibus correto, o final da linha é no Mercado.

ESCOLHE DE NOVACHION A COR DO PINTATION

No Largo Glênio Peres, espécie de antessala do Mercado Público, Nina ganha uma aula sobre o senso de sobrevivência do povo brasileiro. Dois artistas de rua, ambos com sotaque nordestino, mostram seu talento em um show de variedades. Exibem malabarismo (saltando entre três arcos com facas apontadas para a parte de dentro), contam piadas e, ao final, vendem uma miraculosa pomada para dor nas costas. Após uma dezena de blagues de duplo, triplo e quádruplo sentidos, que terminaram com um pedido para que Nina escolhesse a cor do pintinho que sairia do saco (branco, amarelo ou preto), recusamos comprar a pomada e rumamos ao Mercado. Um dos artistas insistiu:

– Escolhe “de novachion” a cor do “pintation”, moça.

As cores do Mercado Público, das verduras nas bancas aos orixás nas floras, encantam Nina. Mas na hora de colher alguma informação mais detalhada, ela depara com o mesmo problema, a mesma estranheza do interlocutor – que evidencia a falta de costume de Porto Alegre em receber gringos aos borbotões, como Rio e São Paulo.

– Não falo inglês, moça, não falo – responde um segurança do Mercado. – Mas tu pode pedir informações com o pessoal da atenção ao turista – acrescenta, mostrando com a mão o caminho em “L” a ser tomado para encontrar o CIT localizada no Mercado.

Na procura pelo “L”, Nina se vê em meio ao flea market, o brique do Mercado. Repara em peças de porcelana e em um suposto quepe alemão da II Guerra. Na ausência de placas, achar o centro de informações turísticas ganha contornos de gincana nonsense.

– Não sei o que ela está falando, não. Mas eu sei dançar, quer dançar, guria? – diz, simpaticamente, o funcionário de uma das bancas.

Enfim no CIT, a alemã faz duas perguntas: há museus a serem visitados no Centro? Como chegar de ônibus ao Beira-Rio? (Se para um porto-alegrense que nasceu e vive na cidade há 40 anos já é complicado aquele emaranhado de ônibus no Centro, imagine para um estrangeiro...) Saímos de lá com informações em perfeito inglês, mas um tanto confusos com a localização das linhas para o estádio, dadas em um papel escrito a lápis: Serraria, Padre Reus e Praia de Belas. No verso do bilhete, três sites sobre os ônibus. Um mapa que é bom, nada.

MUSEUS, POR NATUREZA, DEVERIAM SER BILÍNGUES

Damos uma pequena caminhada até ao Museu de Artes do Rio Grande do Sul, passando em frente ao Paço Municipal – onde Nina viu pela primeira vez em Porto Alegre o logo oficial da Copa na rua, em um painel instalado no prédio da prefeitura. No Margs, os recepcionistas, apesar de gentis, falam só português:

– Espera um pouquinho, moça. Vou chamar uma menina que fala inglês.

Do arquivo do Margs veio o socorro. Em inglês, a funcionária explicou que o acervo do museu está todo em português e que não há guias nem monitores bilíngues – o cenário “portuguese only” se repetiria, no dia seguinte, na Casa de Cultura Mario Quintana.

– Museus, por natureza, deveriam ser bilíngue, pois são atrações turísticas – lamenta Nina.

Retomamos a Praça da Alfândega em direção ao Santander Cultural. Nina se apresenta aos recepcionistas, que pedem alguns instantes, pois chamariam uma colega que se expressava em inglês. Solícita, a funcionária vai logo se desculpando pelo pouco domínio do idioma e, imediatamente, monta uma minivisita para mostrar o prédio (a exposição Vik Muniz – O Tamanho do Mundo estava em processo final de montagem e não pôde ser vista).

É SÉRIO QUE VOCÊS COMEM CHICKEN HEARTS?

Hora do almoço. Um táxi nos levou ao tradicional restaurante Barranco, a primeira churrascaria na lista de opções gastronômicas do folder entregue no CIT do aeroporto. Em uma mesa ao ar livre da “Barranco barbecue” (o que bastou para que o motorista compreendesse nosso destino), Nina encara um choque cultural. Com grande espanto, a universitária de Nuremberg parece não acreditar no que anuncia o cardápio em inglês. Sente-se como se diante de alguma espécie de vodu:

– Chicken hearts?!? É sério que vocês comem isso?

Muito a contragosto, a jovem alemã acabou provando uma das grandes instituições da cultura gaudéria, aperitivo por excelência do churrasco.

– Hummm... é melhor do que eu esperava – constata, mas sem se atrever a devorar outro coração de galinha. Em compensação, foi plenamente aprovado o lombinho de porco com queijo.

Porto Alegre está preparada para receber os mais de 88 mil estrangeiros que desembarcarão com os seus ingressos para a Copa do Mundo? Para responder, ZH convocou o seu reforço alemão, a estudante de marketing esportivo Nina Hechtel, 22 anos, que passará três meses na redação do jornal. No blog Olhar Estrangeiro (zerohora.com/olharestrangeiro), ela vem relatando as suas descobertas na Capital.

De segunda a quarta-feira, acompanhei a alemã de Nuremberg pela cidade que receberá cinco partidas do Mundial. Nina é fluente em inglês. O seu português ainda é limitado ao “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite” e se arrisca de vez em quando em um gastronômico “gostoso”. Decidimos iniciar o teste pelo ponto de partida da maioria dos gringos: o aeroporto Salgado Filho. Minha missão era apenas testemunhar (sem dizer palavra sequer em português) a busca de Nina por informações e dicas turísticas, junto a instituições públicas ou às pessoas nas ruas. O resultado você confere nas quatro páginas a seguir.

TENHO CERTEZA DE QUE NINGUÉM VAI SE PERDER

O tour pela Porto Alegre da Copa vai chegando ao fim. De táxi (uma vez mais com o motorista falando apenas a nossa língua, mas sem dar voltas desnecessárias), visitamos a Usina do Gasômetro e a Fundação Iberê Camargo. Na recepção da Usina, um dos servidores deixou escapar um “ai, meu Deus” ao ouvir a pergunta em inglês, mas não se mixou e nos conduziu até o CIT local, onde duas atendentes dominavam o idioma. Na Fundação Iberê, Nina encontrou um guia em inglês e textos bilíngues ao lado das obras. Além da beleza do prédio, a alemã achou graça do aviso de “proibido chimarrão”.

Ao final destes três dias vendo minha cidade pelos olhos azuis de Nina, percebi uma certa indiferença em relação à Copa. Sim, a venda de ingressos para os jogos no Beira-Rio foi um sucesso; sim, os transtornos causados pelas obras ligadas ao Mundial são assunto nas rodas de conversa; sim, crianças, mulheres e idosos reúnem-se na Praça da Alfândega para trocar figurinhas do álbum. Mas talvez pelo momento político-social do país, talvez porque Grêmio e Inter (nitidamente “maiores” do que a Seleção) continuam jogando o Brasileirão, talvez por uma atávica contrariedade dos gaúchos, a Copa ainda não engrenou.

Uma certeza, daquelas que só quem é da família pode falar e que se alguém de fora te diz isso soa ofensivo: nossa preparação para a Copa foi ao pior estilo jeitinho brasileiro. Não falamos inglês, nos viramos com um gardelônico portunhol e resolveremos muitas coisas no improviso. Uma esperança, fundamentada em tudo o que presenciei: esse Mundial poderá nos deixar como legado aquilo que sempre nos orgulhou – o bem receber, a solidariedade e a boa educação. Nas palavras da Nina:

– Ainda que Porto Alegre não esteja 100% pronta para receber os turistas, tenho certeza de que ninguém vai se perder e que todos terão dias agradáveis aqui por causa da bondade e da gentileza das pessoas.


ITS IN PLACES LIKE THIS WHERE IS BORN THE BEST FOOTBALL



Ainda que o Barranco tenha menu em inglês, não há maiores explicações sobre os pratos e seu modo de preparo, algo que se verificou também em outros restaurantes citados no folheto turístico entregue no Salgado Filho: Gambrinus, Varietá Bistrô, Ratskeller Baumbach e Komka. Nestes dois últimos, porém, proprietários e garçons tentam a comunicação em inglês. No Baumbach, o garçom Éder (assim batizado, ele contou, em homenagem ao lendário ponta da Seleção Brasileira) até misturou um pouco de alemão ao inglês. No Komka, o dono mostrou-se fluente no idioma de Rooney e despediu-se de Nina em alemão, “Auf Wiedersehen!” – provocando um largo sorriso de quem sentiu uma pontinha de saudade de casa.

Coração de galinha provado e lombinho de porco com queijo aprovado, Nina decide esticar as pernas no Parque da Redenção, ou Redemption Park, como foi dito a ela. No ônibus da linha T7, o cobrador também envereda pela mímica para indicar a parada correta.

– São maiores do que os parques da minha cidade – compara Nina, que achou digno de uma selfie o Monumento ao Expedicionário.

A Redenção abriga um CIT, o quinto que encontramos (embora um pouco escondido no centrinho do parque), novamente com bom atendimento em inglês. O mais surpreendente do passeio – ao menos para mim – é a placa colocada na grade da quadra de futebol de areia do Ramiro Souto: “Arena Redenção – It is in places like this where is born the best football in the world” (é em lugares como este onde nasce o melhor futebol do mundo).

FALTA OBRA E FALTA TEMPO, MAS O ESTÁDIO FICOU BONITO

O T7 volta a ser citado por porto-alegrenses quando Nina quer ir ao Beira-Rio. Seguimos para a bus station da Avenida Osvaldo Aranha, em frente ao icônico Bar Ocidente, agora pintado em púrpura. No fim da linha, na Praça Itália, entre as avenidas Borges de Medeiros e a Praia de Belas, enfim se respira Copa. Ou pelo menos se enxerga, de fato, Porto Alegre como sede de Mundial, graças às placas de orientação.

Bem sinalizada, a rota de 20 minutos a pé para o Beira-Rio é fácil até que a calçada que acompanha o Parque Marinha do Brasil se transforma em um tremendo barral, devido à falta de calçamento e à chuva acumulada de dias anteriores – a prefeitura promete colocar brita nesse areião para tentar evitar tombos de torcedores. Ao chegar em frente à casa dos jogos, sua cultura germânica foi um tanto abalada com a visão do entorno do estádio e do viaduto Pinheiro Borda inconcluso, temperada por uma breve conta mental sobre o minúsculo tempo que falta para a primeira partida no Beira-Rio.

– Mas o estádio ficou bonito – pondera Nina.

DO HOTEL AO HOSPITAL, PASSANDO PELA POLÍCIA

Nina dedicou a quarta-feira para testar outros serviços de que os milhares de turistas poderão precisar. Hospedada em uma casa de família, ela visitou cinco dos hotéis listados nos folhetos colhidos nos CITs. Nos cinco, foi bem atendida e em bom inglês – no Embaixador, no Centro, o recepcionista até arriscou algumas palavras em alemão (os outros hotéis foram o Millenium, o Intercity, o Sheraton e o Master).

Ainda no Centro, Nina abordou alguns policiais. Nenhum brigadiano conseguiu se comunicar. Ela também foi ao hospital de referência para a Fifa na Capital, o Mãe de Deus, e ao Hospital de Pronto Socorro (HPS). No Mãe de Deus, as recepcionistas levaram Nina para uma sala à parte e chamaram uma espécie de monitora, que falava bem inglês. Ela explicou que no setor de emergência há “cinco ou seis” médicos e enfermeiros habilitados a atender os turistas. No HPS, a esforçada moça da recepção conseguiu dizer que, se uma estrangeira necessitar de auxílio, pode se dirigir diretamente ao hospital, mas não soube passar um telefone de emergência.










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